chuva no mar

Coisas transformam-se em mim
É como chuva no mar
Se desmancha assim em
Ondas a me atravessar
Um corpo sopro no ar

Com um nome pra chamar
É só alguém batizar
Nome para chamar de
Nuvem, vidraça, varal
Asa, desejo, quintal
O horizonte lá longe
Tudo o que o olho alcançar

E o que ninguém escutar
Te invade sem parar
Te transforma sem ninguém notar
Frases, vozes, cores
Ondas, frequências, sinais
O mundo é grande demais

Coisas transformam-se em mim
Por todo o mundo é assim

Isso nunca vai ter fim

Act 5 Scene 5 lines 17-28

MACBETH
She should have died hereafter;
There would have been a time for such a word.
To-morrow, and to-morrow, and to-morrow,
Creeps in this petty pace from day to day
To the last syllable of recorded time,
And all our yesterdays have lighted fools
The way to dusty death. Out, out, brief candle!
Life’s but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his hour upon the stage
And then is heard no more: it is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.

[ William Shakespeare in Macbeth ]

cartas de oxum

Embaralhou o maço, me pediu para escolher sete cartas. Observou lentamente o jogo formado, ajeitou o tarot em círculo e pegou o arcano com o desenho de um homem sozinho, um único coração sobre a cabeça.

– Tem um rapaz aqui. Ele é alto, magro, cabelos escuros e bagunçados, barba comprida, tem trinta anos, pele branquinha… Ele gosta de você. – pausa – Mas ele é muito imaturo, viu? Não sabe o que quer fazer, tem muitas incertezas no coração. No passado ele se interessou muito, muito, muito, e ficou com medo de te machucar, então se afastou. Quase se entregou, mas achou que o melhor era se afastar. – pausa – Ele pensa em você, às vezes, mas nada sério, ele quer se divertir, não quer se apegar, um reflexo de insegurança. – olha pra mim – E você tem um coração cheio, tem muito afeto aí, quer um coração cheio igual. Não um coração que se divide, que te abraça hoje e amanhã abraça a outra e que na verdade não abraça nenhuma. Dorme sozinho aquele que se divide muito. – pausa – Você gosta muito dele, né? Sente que têm muita coisa em comum… É vocês têm bastante em comum… Manda uma mensagem pra ele. Ele vai se aproximar. Ele não vai vir por conta, é muito orgulhoso e espera sempre que cheguem nele, não vai até ninguém, apenas espera, mas se você mandar uma mensagem pra ele, ele vai se aproximar. Quem sabe ele não se apega?

passio angustifolia

Sonhei com você.

Subia pela trilha íngreme, lentamente, com as botas barrentas. A mochila nas costas levava o peso de uma vida e o suspiro de uma esperança. A cada passo um afundo de terra, um escorre: de pé, de suor. Após uma longa caminhada, a colina se mostrara plana, no topo: uma araucária, um moço. Reconheceu de pronto a meia alta, a bochecha saliente, os cachos dum negro, dum bem escuro. Sorriu e se abriu pro abraço que não veio:

– Não, você está enganada. Sempre esteve. Se iludiu e nada mais. Agora estou apaixonado – passou o braço pela árvore áspera – e juntos teremos filhos e pinhão. O que fica pra ti é reza de santeiro. E digo.

Lembro de mais nada após a fala, um barulho… um riso talvez? Assustei com o toque do celular e antes de despertar por completo ouvi um choro baixinho, lento, como se uma criança interna a mim estivesse triste.

brota no bailão pro desespero do seu ex

Faça-se de corpo presente ante a magnânima reunião festiva carnal com o intuito de estabelecer um sentimento de desordem taquicardíaca e gélida sudorese em vosso destituído consorte casual.

espelho partido

Ramon se lembrava do dia em que haviam caído na água os dois, de mãos dadas, porque brincavam de andar para trás – ao cair, Ramon segurara a mão de Maria mais forte para que ela também caísse. A água estava fria, o vestido levantara e a renda das anáguas ficara presa na coxa: rendinhas e ondas e flores. A água rodeava-os espessa, remexida, sem céu e sem folhas, e eles estavam perdidos em meio àquele mar de peixes que saltam e baleias que nadam devagar com as costas para fora do mar que não tem fundo, as baleias que esguicham como um sopro de nariz duplo porque algumas baleias têm muitos narizes e nadam com o arpão cravado na parede da banha que envolve tudo o que elas têm dentro… tripas e fígado e coração, tudo o que tem dentro das pessoas só que grande, porque a baleia é a rainha do mar, mais forte que uma fragata com tudo o que ela carrega de mastros quebrados e de velas despedaçadas e de madeiras podres; com tudo o que tem dentro trabalhando, e os sucos de tantas coisas que vão e vêm, e o sangue que não acaba de ser sangue e faz bater o coração que se você corre demais encosta nas costelas, a água vermelha que banha o fígado e uma bolsa como a bolsa dos prendedores de roupa que as empregadas amarram na cintura para estender os lençóis lavados com espuma de sabão… A água em volta da coxa e a rendinha de vazados e flores e tudo delicado e as sujeiras de lodo, e ainda lhe segurava a mão, não tenha medo, e uma aranha que caíra de um galho roçou-lhes a testa, pegajosa, e gritaram e saíram das árvores aos poucos e entraram na cozinha e, então, começaram os gritos de Armanda: o que é essa lama toda? E lhe levantava a saia e de novo as flores, as ondas, a pele lustrosa, retesada e suja…

[ Mercè Rodoreda ]

um buraco no infinito

Não soube direito para onde ir, então vim pra cá.

Há um tempo me convenci de que não teria uso real toda essa ideia simplória de conexão. É simples demais, é fácil demais, é fútil demais ter tanta gente no alcance do dedão. Direita, esquerda, esquerda, direita, passam-se as folhas do catálogo. Fotos no banheiro, selfies borradas, pets forçados ao sorriso, tanquinhos à mostra, Disney, muita Disney, isso quando não armas, carros deturpados que se fazem de moda, símbolos de ordem e progresso… E os dizeres? Muito se fala que quer, mas um querer muito rígido: tem que ser assim, assado, cozido. Pra mim quem muito diz que quer e pouco faz de querer, na verdade não quer nada, não.

Há não tanto tempo assim me convenceram de que nos dias de hoje não teríamos muito jeito de conhecer tanta gente. Demorei um bom ano para me induzir ao vai-e-vem. Aproveitei o buraco do tempo e olhei afazeres meus: resolver pendências, tirar um pó dali, mudar de lado o cá, variar as vistas, variar os pesares, os quereres. Variei tudo o que consegui variar e tendo meu castelo erguido, minha rede posta, meus gatos por perto, achei que fosse um bom momento pra prática de meu dedão.

Ouvi boatos de um catálogo específico, mais coeso, mais humano, mais assertivo, mais isso, mais aquilo, fulana encontrou ciclano lá, beltrano só usa esse, é um arraso, amiga, vai fundo. Fui fundo e foi um arraso mesmo: me senti no chão arrastada pela falta de coerência. As notificações são muitas, vendem o peixe que só, a cada minuto recebia várias exclamações de como a minha folhinha de catálogo estava fazendo um suposto sucesso. Números sempre a mostra: dez pessoas curtiram sua cara e a descrição parcial e mui recortada da sua vida, vinte pessoas curtiram, trinta pessoas, quarenta… ! Chegou até ao noventa e nove com o símbolo de maizinho ao lado, o máximo que a interface suportava. Um arraso. Cada dedão meu pra direita era festa de vínculo: um encontro do destino! a felicidade chegou! mande mensagem, não o deixe esperando! Um arraso. E não deixei mesmo ninguém esperando, fui aos vinte que o catálogo festejou. Vinte oi, vinte tudo bem?, vinte e, aí?, vinte variações de saudação, vinte interesses recíprocos, vinte conexões, vinte olhadelas discretas, vinte sorrisos calorosos, vinte escritos acolhedores, vinte momentos de espera, vinte criações de expectativas que resultaram em zero retornos. Ninguém me respondeu. Um arraso.

Encarnando o capeta, mandei áudio pro Gordo: que caralho de geração de merda! Ele riu gostoso: a, mano, é, a galera não responde, mó saco, mas tem que gastar um tempo, uma energia ali, é assim mesmo. É assim mesmo, pensei. A galera não responde, é assim mesmo. Tem que gastar um tempo, uma energia com a galera que não responde, é assim mesmo. Um arraso.

receita para deleite

Ingredientes:
– duas pessoas
– uma xícara e meia de más poesias
– duas colheres de tesão
– uma garrafa de vinho ou outro alcóolico de sua preferência
– meia colher de timidez
– uma pitada de empatia

OBS.: Em tempos de hoje, se faz necessário o acesso tecnológico. Se estivéssemos em tempos de ontem, haveriam outras formas para a receita dar certo: ligações, cartas, piscadelas, sinais de fumaça…

Modo de preparo:
Abra o vinho e sirva em abundância duas taças, ou dois recipientes bebíveis. O álcool relaxa a rigidez dos músculos e acelera os batimentos cardíacos. Pré-aqueça o ambiente com luz suave e música em volume ameno. Se souber cantar o que escuta, melhor. Coloque em uma refratária alta as xícaras de más poesias e adicione o tesão, a timidez e a empatia. Mexa delicadamente com uma colher de pau até a massa ficar homogênea e lisa. Cuidado para não bater muito rápido ou forte, algumas bolhas aparecerão e pode desandar o processo. Se sentir que está mexendo muito apressadamente a massa, cante com mais intensidade e coloque a taça de vinho um pouco de lado. Deixe a mistura descansar por 5 minutos: em contato com o vinho, as fibras rijas da timidez se dissolverão naturalmente; a empatia e as más poesias produzirão risos sinceros – ou altas gargalhadas dependendo da quantidade de vinho ingerida. Transfira a massa para um local quente: embaixo de uma manta, uma proximidade corporal, uma apalpada delicada. O tesão se multiplicará e fará a mistura dobrar de volume. Sirva a seguir, ainda quente.

Avisos:
– Essa receita causa aceleração cardíaca e respiratória. É normal sentir calafrios, arrepios e suadeira.
– Pode-se aumentar ou diminuir o número de pessoas na receita, apenas recomendamos que altere os outros ingredientes na mesma proporção.

a los varones

Ela tem trinta anos, mora sozinha, adotou dois gatos, tem quinze plantas, tem a própria empresa, tem ótimos e famosos clientes, é sênior da equipe de uma segunda empresa, tem bacharelado em universidade pública, fez intercâmbio no exterior, rabisca um mestrado, teve trabalhos artísticos expostos, teve trabalhos artísticos publicados, participou de bienal internacional, fala quatro idiomas, conhece vinte e oito países, morou em três países distintos, conhece todas as regiões do Brasil, borda, costura, pinta, ilustra, projeta e faz marcenaria, programa, edita foto, edita filme, cozinha, limpa, passa, toca dois instrumentos clássicos, luta taekwondo, escala, faz trilhas na montanha, joga basquete, joga vôlei, nada, pedala, sabe conduzir carro, sabe conduzir moto, sabe conduzir veleiro, se arrisca na poesia, se arrisca na prosa, lê três livros ao mesmo tempo, canta no chuveiro, deseja ter uma casa no campo, cuidar de animais, cuidar da horta, descansar a vista, mas a única e mesmíssima coisa que sua tia pergunta é:

– E os namoradinhos? Não vai ficar solteira a vida toda, né?


Estavam sentados na mesinha circular da sala, comíamos as tradicionais migas daquela receita de família, um jazz melodioso tocava ao fundo, baixinho. Quando foi bebericar o vinho, notou que Julián a olhava sério.

– Te los pone miedo, lo sabías? A los varones…

Sabiá-laranjeira

Lembro-me que por um tempo trabalhou na casa de minha infância uma moça que se chamava Maria. Era simpática, Maria, prestativa em seus afazeres, cuidadosa em nossas vivências de criança. Gostava principalmente do cafézinho depois do almoço, quando sentava sem os sapatos perto do canteiro da cozinha. Tomando sol, os pés cansados pro alto, normalmente assobiando desengonçada uma melodia doce.

Um dia fui a cozinha pegar alguma guloseima e encontrei com Maria em seu descanso. Ao invés do canto, conversava baixinho em tom melodioso e eu, criatura curiosa, fui nas pontas dos pés espiar pela beirada da porta. Ela conversava com um passarinho que havia se empoleirado no mamoeiro baixo.

Esse mamoeiro tinha sido plantado por meu irmão, tal qual outras tantas árvores que tínhamos no quintal. Revezávamos para plantar tudo que havia ali e às vezes brigávamos pelo espaço da futura amoreira, da futura pitangueira, do futuro abacateiro. Mas por mais que brigássemos, sempre havia espaço e quando não havia, escalávamos o muro dos fundos e plantávamos na área comum do terreno. Era o nosso momento de criança cheia de terra, com as unhas engalfinhadas de sujeira e as bochechas queimadas do sol.

Os passarinhos haviam sempre. Tanta fruta dando mole, eles vinham se aliviar da fome. E logo saiam quando alguém passava ou espiava de soslaio, se esquivavam de nós, mas não de Maria.

Um dia perguntei aflita a mágica dela com os pássaros: por que eles não fogem de você?

– Porque eles veem até mim, minha filha. Meu amor, lá no Ceará, que os envia pra me ver. Saber se estou bem. Faz tempo, querida, que vim pra cá, ele fica preocupado. Envia os pássaros pra me ver, mandar notícia. É seu jeito de amar de longe.

Um dia Maria não veio trabalhar, passou uma semana sem aparecer e minha mãe, preocupada, ligou para quem soubesse dela. Uma moça que trabalhava na vizinhança comentou brevemente que Maria tinha numa tarde seguido por aí um passarinho e não havia mais voltado.