a praia congelada

Estava numa praia localizada numa baia rodeada de altas montanhas. E tudo estava congelado: a areia quase pedra, as ondas duras em baixos degraus espumosos, os cumes longínquos brancos. Era uma praia e ela estava congelada. Havia um barco perto de mim, deck de madeiras alongadas, marrom clássico. Tenho a sensação de que era um veleiro, mas não lembro do mastro para ter certeza. Ele parecia preso na areia rochosa. Me coloco num lugar alto – talvez eu tenha subido no deck – e começo a olhar em volta. Olho as montanhas geladas, todas muito altas, todas cheias de neve – em algum espaço da baia, talvez em frente à praia, há uma pequena planície que poderia ter uma cidade, mas não tenho certeza, um rio me passa a mente agora, mas, de novo, não tenho certeza – e conforme vou girando, vejo que as montanhas vão derretendo, como se o sol estivesse passando por elas.

Acordo com a sensação de que algo muito bom está congelado. Penso no Douglas. Me bate uma sensação de desânimo.

Agora, mais desperta, escrevendo o que lembro, me dá a sensação de que algo muito bom está descongelando. Mas não tenho muita certeza se é sobre isso.

cela m’est venu à l’esprit

Andava alegre por um vilarejo alegre, de casas alegres e jardins também alegres. O dia era um dos mais prazerosos possíveis: nem tanto sol, nem tanta sombra, sem vento, nem chuva, um tanto de céu azul com nuvens. O pequeno povoado colorido ficava ao pé de uma cadeia de montanhas sinuosas, avistava-se ao longe seus muitos cumes e, mesmo pela distância, era possível pressentir o gralhar das aves de rapina.

Os transeuntes passeavam de um lado pro outro, animados, trocavam pequenos objetos, conversando em línguas desconhecidas e gesticulando aqui e ali. Eu andava pela cidadela tal qual andei em Gênova há muitos anos: olhava com interesse as casas, as pessoas, as plantas, os objetos; entrava numa viela, numa loja, comia um petisco aqui, um doce típico lá. Quando passei por uma das muitas habitações lindinhas e alegres uma mão me segura pelo ombro direito: um homem alto, de cabelo preto raspado, vestindo uma roupa também preta colada ao corpo. Ele me retirou de minha perambulação. Segui-se assim uma luta silenciosa onde eu puxava meu ombro e ele pegava meu braço, eu puxava meu braço e ele pega o outro ombro. Mudos, ele teimava em me segurar e eu teimava em me soltar. Até que, em um movimento muito rápido, ele para na minha frente, levanta as mãos acima da cabeça, criando penas grandes e volumosas pela extensão de seus braços e me dá um chute no meio do peito com seu pé agora em forma de garra. Eu observo sua patas de gavião enroscada na minha blusa e pergunto:

– Vai ser assim mesmo?

Antes de ouvir qualquer ruído do homem-pássaro, a montanha ao fundo se levanta: o pico mais alto, um vulcão de enorme magnitude, desperta, sua lava jorra potente, um brilho azul-branco-violeta abraça toda a cadeia de montanhas. A vibração da sua explosão atinge a todo o povoado. A lava expele em frequências altíssimas e ritmadas. O céu inteiro palpita em púrpura intenso e todas as pessoas do vilarejo observam o espetáculo em silêncio. As luzes das vielas iluminadas murmuram:

– O vulcão não chega até aqui?

Olho ao redor buscando a resposta e meus olhos se cruzam com os de uma mulher muito alta, loira, rígida e de feições duras. Ela responde seca:

– Não, o vulcão não chega no vilarejo.

Mas assim que retruca, todas as luzes se apagam e no breu do povoado, escuto as pessoas se movimentarem em fuga. O vulcão chegou e elas precisam sair. Rapidamente pego minha mochila no chão e vou embora.

5.

O que vou fazer, agora que o céu
fechou sua porta de ferro

e amarrou as nuvens
atrás da lua

agora que o vento
distraiu o oceano

agora que o rubro meteoro
mergulhou no lago

agora que estou acordado
agora que você fechou o livro

[ John Yau ]

cartas de oxum

Embaralhou o maço, me pediu para escolher sete cartas. Observou lentamente o jogo formado, ajeitou o tarot em círculo e pegou o arcano com o desenho de um homem sozinho, um único coração sobre a cabeça.

– Tem um rapaz aqui. Ele é alto, magro, cabelos escuros e bagunçados, barba comprida, tem trinta anos, pele branquinha… Ele gosta de você. – pausa – Mas ele é muito imaturo, viu? Não sabe o que quer fazer, tem muitas incertezas no coração. No passado ele se interessou muito, muito, muito, e ficou com medo de te machucar, então se afastou. Quase se entregou, mas achou que o melhor era se afastar. – pausa – Ele pensa em você, às vezes, mas nada sério, ele quer se divertir, não quer se apegar, um reflexo de insegurança. – olha pra mim – E você tem um coração cheio, tem muito afeto aí, quer um coração cheio igual. Não um coração que se divide, que te abraça hoje e amanhã abraça a outra e que na verdade não abraça nenhuma. Dorme sozinho aquele que se divide muito. – pausa – Você gosta muito dele, né? Sente que têm muita coisa em comum… É vocês têm bastante em comum… Manda uma mensagem pra ele. Ele vai se aproximar. Ele não vai vir por conta, é muito orgulhoso e espera sempre que cheguem nele, não vai até ninguém, apenas espera, mas se você mandar uma mensagem pra ele, ele vai se aproximar. Quem sabe ele não se apega?

os namorados pobres

O namorado dá
flores murchas
à namorada
e a namorada come as flores
porque tem fome
Não trocam cartas
nem retratos nem anéis
porque são pobres
Mas um dia
têm muito medo
de se esquecerem
um do outro
então apanham
um cordel
do chão
cortam o cordel
com os dentes
e trocam alianças
feitas de cordel
Não podem
combinar encontros
porque não têm
número de telefone
nem morada
assim encontram-se
por acaso
e têm medo
de não se voltarem
a encontrar
O acaso
não os favorece
Decidem nunca sair
do mesmo sítio
e ficarem sempre juntos
para não se perderem
um do outro
Procuram um sítio
mas todos os sítios
têm dono
ou mudam de nome
Então retiram
dos dedos
os anéis de cordel
atam um anel
ao outro
e enforcam-se
Mas a namorada
tem de esperar
pelo namorado
porque o cordel
só dá para um
de cada vez
O namorado
descansa à sombra
da figueira
e a namorada
baloiça
na figueira
O dono da figueira
zanga-se
com os namorados pobres
porque julga
que estão a roubar figos
e a andar de baloiço

[ Adília Lopes ]

passio angustifolia

Sonhei com você.

Subia pela trilha íngreme, lentamente, com as botas barrentas. A mochila nas costas levava o peso de uma vida e o suspiro de uma esperança. A cada passo um afundo de terra, um escorre: de pé, de suor. Após uma longa caminhada, a colina se mostrara plana, no topo: uma araucária, um moço. Reconheceu de pronto a meia alta, a bochecha saliente, os cachos dum negro, dum bem escuro. Sorriu e se abriu pro abraço que não veio:

– Não, você está enganada. Sempre esteve. Se iludiu e nada mais. Agora estou apaixonado – passou o braço pela árvore áspera – e juntos teremos filhos e pinhão. O que fica pra ti é reza de santeiro. E digo.

Lembro de mais nada após a fala, um barulho… um riso talvez? Assustei com o toque do celular e antes de despertar por completo ouvi um choro baixinho, lento, como se uma criança interna a mim estivesse triste.

pipoca meio a meio

Na entrada do metrô, na volta pra casa, vejo o carrinho de pipoca e batatinha que tanto me delicia. Peço, sorridente por detrás da máscara, a minha preferida: pipoca meio a meio, metade de baixo doce, metade de cima salgada: – moça, embrulha bem pra eu levar no metrô, faz favor? – claro, querida, claro.

Nisso, cola junto muito ligeiro um sujeito surrado, olhos vermelhos e andar de lado: – você aí vai me pagar uma dessa, e vai me pagar agora. – de ligeiro a fala não tinha nada, língua embolada, cabeça mole. Minha reação foi o silêncio, num sou nada de imposição, ainda mais quando duvido da consciência de quem me pede. Virei para o lado para completar meu pedido, o homem balbucia mais alto: – eu falei que você vai me comprar! e você vai comprar! – retruco: num vô não. – vai sim! – eu não vou não. – ah, mas que mulê brava que é, é, – ri como porco – quero ver ser brava assim quando tiver uma arma na cara. – e sai, a esmo, tropeçando em si.

peste

“E de cada vez que li uma história de peste, do fundo de um coração envenenado pelas suas próprias revoltas e pelas violências dos outros, um grito claro se ergueu dizendo que no entanto havia nos homens mais coisas para admirar do que para desprezar.”

“E a peste cada um a traz consigo, porque ninguém, sim, ninguém no mundo, está imune. E é necessário vigiarmo-nos constantemente para não sermos levados num minuto de distracção a respirar na cara de alguém e a pegar-lhe a infecção. O que é natural é o micróbio. O resto, a saúde, a integridade, a pureza, se preferirem, é um efeito da vontade, e de uma vontade que nunca deve deixar de exercer-se. O homem honesto, o que não infecta ninguém, é aquele que se distrai o menos possível.”

“Sim, é fatigante ser-se um patife. Mas é ainda mais fatigante não querer ser um patife. É por isso que toda a gente está fatigada, porque toda a gente o é um pouco. Mas é por isso também que alguns conhecem tão fundo cansaço que só a morte os poderá libertar dele.”

[ Albert Camus ]

a bordo de un pesero adornado con flores y banderines

Gosto dos meus sonhos: fico repassando as cenas, colhendo os detalhes, divagando nas pequenezas como se o inconsciente quisesse me mostrar de uma forma muito divertida um assunto muito sério. Gosto deles, sim, mas sinto que precisam de uma boa repaginada no elenco, modificação de enredo… Em dias de marasmo, a criatividade perde um pouco do brilho.

Mas vim contar o que tive hoje, pois mesmo igual, foi bem diferente. E gostei bastante.

Estava esperando na plataforma de embarque de um terminal rodoviário bem simples, daqueles de concreto cinza escuro e cheiro de borracha queimada. Carregava comigo bagagem para uma mudança inteira: malas, malinhas, malões e algumas sacolinhas bem pequenas que não servem de nada para mudanças, mas nos sonhos nunca duvidamos do que carregamos. Me sentia naquele estado de calma expectativa e observava com amorosidade o terminal com pouco movimento (essa cena, inclusive, me faz lembrar, agora acordada, de quando estava no aeroporto de Manaus e fui procurar o lugar mais alto do edifício para ter a visão completa do vai-e-vem da galera com a nesga de vista do mato e rio negro, mas voltemos:). Num determinado momento entra na minha visão uma figura sorridente correndinho de longe (sim, essa mesma cena), vinha de outras plataformas, o menino, e vinha meio durinho, meio andando pelos contornos, desviando de algumas poucas pessoas. Chegou em mim cheio de bochechas – Vim me despedir (nos sonhos as vozes são as nossas) – e me pegou pelos braços. (Coisa curiosa, nos sonhos, quando o toque acontece. É tão vivaz! É tão quente e tão confortável! Esses braços, nunca tendo me pegado, me pegaram.) Ficamos ali, aninhados, bochechas e braços e pelos (da barba, do cabelo) até que um barulho de buzina bem forte soa. Olho para a plataforma e vejo um ônibus colorido (e muito parecido com os que circulam por Lima) se aproximando: adornado com flores e bandeiras e escritas, tudo muito colorido, muito alegre, muito festivo, e haviam cortininhas felpudas em todas as janelas (onde o kitsch encontra o brega). O letreiro dizia Merida e o itinerário em caligrafia caprichosa completava a lataria. Já estacionado na minha frente, o ônibus abre a porta de passageiros e um condutor gorducho aparece – bienvenida, señorita! – e me dá espaço para entrar. Subo rapidamente e vejo ao fundo dos assentos uma banda tocando uma cumbia caribenha. Procuro meu lugar, bem no meio do carro (nem tanto ao céu, nem tanto à terra) e olho pela janela: o rapaz agora trazia uma guitarra (ou um baixo? não sei diferenciar um de outro, tanto faz) e embalava a cumbia. Balançava os ombros pra cima, pra baixo e remexia os pés tal qual galinha ciscando (como já o vi fazendo nuns cantos por aí). O ônibus saiu de ré, indo pelo mesmo caminho que veio. A plataforma foi diminuindo e ficando para trás até que não se via mais.

o tribunal de osíris

Aguardava em um cômodo escuro quando foi chamada por uma porta lateral: seu julgamento começara e a esperavam para prestar testemunho. A saleta era espaçosa e se amontoavam ídolos dourados pelas arquibancadas altas, inquietos pela demora da papelada, se agitavam e resmungavam, às vezes brandando sinais indecorosos, às vezes pedindo paciência. Foi conduzida até uma pequena cadeira de madeira encostada numa das quinas da parede. Se acomodou o máximo que a desconfortável mobília lhe permitia e olhou para frente, onde, atrás de uma mesa envernizada, se acomodava, sério, o juiz. Suas vestes ornamentadas, seus vários colares dourados, um turbante esguio recheado de mil olhos e uma barba espessa e ruiva lhe encaravam.

Com um sinal da mão direita, recebeu o silêncio dos presentes. Puxou um papel amarrotado, pigarreou e enumerou pausadamente os vários crimes em vida. A audiência a cada frase se agitava mais, berravam, latiam, urravam. Um homem surgiu ao seu lado, segurou seu braço esquerdo e com um único movimento preciso arrancou seu coração. Afastou-se e colocou o órgão pulsante em uma cuia de ouro, um número apareceu na tabuleta.

– Seu coração está pesado, nenhuma liberdade vem daqui – disse o juiz – o tribunal está encerrado.

Ela se levantou com derrota, recolheu o pequeno fardo encharcado de sangue e seguiu pela porta que entrara. O vermelho manchava seus dedos e o pacote ainda latejava.

Aguardava no corredor exterior, sentada num dos vários banquinhos disponíveis do jardim da faculdade de psicologia. Se sentia exausta e arrependida de ter marcado um horário: tanta gente com tanta coisa mais urgente e ela ali, com todo o privilégio, usando um tempo precioso do sistema público. Ontem mesmo estava indecisa se ia ou não e pediu alguns conselhos, as respostas ainda latejavam em sua mente: ai quanto drama! você sempre dá dessas! é só esquecer! marcar horário por uma bobeira assim! Encolhida em si, cavoucava com o pé o canteiro ao lado, talvez conseguisse cavar um buraco suficientemente grande para se esconder. Olhou agoniada o relógio, faltavam dois minutos. O pânico rapidamente percorreu seu corpo, levantou e saiu apressada para o estacionamento. Mal deu cinco passos quando ouviu seu nome ser pronunciado: a porta agora estava aberta e um rapaz se escorava nela; vestia um avental branco e segurava uma prancheta perto do peito. Deveria ter a sua idade, um dos graduando do instituto talvez? Ela queria lhe falar que tinha desistido, que era só bobeira, o mal-estar já já passaria, mas assim que abriu a boca, ele fez um sinal gentil para que entrasse. Demorou o que lhe pareceu horas para tomar uma decisão, entrou arrastando na sala fresca.

Se dirigiu para uma das muitas cadeiras de colegial disponíveis, viu de soslaio que ele se acomodava detrás da mesa branca. Sentou encolhida e, após um minutinho de silêncio, ouviu-o dizer: então, com o quê posso te ajudar?

Não é precisa a imagem desse rapaz. Não conseguiria distinguir seus traços, nem a sua voz ou o seu tom. Sabe que é rapaz porque tinha barba. E sabe que era alto porque sua presença lhe parecia imensa no cruze da porta. E ela estava tão devastada, derrotada em seus crimes de existência, em suas bobeiras, que não queria encarrar novos olhos de julgamento. Se forçou a focar o chão e os seus pés inquietos. Se sentia ali crua, nua, pronta pro abate. O que falou naquela hora? Não se lembra tampouco. E importaria? Saiu de lá se sentindo pior do que quando entrou, como se suas vísceras tivessem sido abertas para um completo desconhecido. Toda a sua mesmice, a sua caretice, ignorância, egoísmo, pequenez. Tantas bobagens que ainda latejavam.