Aguardava em um cômodo escuro quando foi chamada por uma porta lateral: seu julgamento começara e a esperavam para prestar testemunho. A saleta era espaçosa e se amontoavam ídolos dourados pelas arquibancadas altas, inquietos pela demora da papelada, se agitavam e resmungavam, às vezes brandando sinais indecorosos, às vezes pedindo paciência. Foi conduzida até uma pequena cadeira de madeira encostada numa das quinas da parede. Se acomodou o máximo que a desconfortável mobília lhe permitia e olhou para frente, onde, atrás de uma mesa envernizada, se acomodava, sério, o juiz. Suas vestes ornamentadas, seus vários colares dourados, um turbante esguio recheado de mil olhos e uma barba espessa e ruiva lhe encaravam.
Com um sinal da mão direita, recebeu o silêncio dos presentes. Puxou um papel amarrotado, pigarreou e enumerou pausadamente os vários crimes em vida. A audiência a cada frase se agitava mais, berravam, latiam, urravam. Um homem surgiu ao seu lado, segurou seu braço esquerdo e com um único movimento preciso arrancou seu coração. Afastou-se e colocou o órgão pulsante em uma cuia de ouro, um número apareceu na tabuleta.
– Seu coração está pesado, nenhuma liberdade vem daqui – disse o juiz – o tribunal está encerrado.
Ela se levantou com derrota, recolheu o pequeno fardo encharcado de sangue e seguiu pela porta que entrara. O vermelho manchava seus dedos e o pacote ainda latejava.
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Aguardava no corredor exterior, sentada num dos vários banquinhos disponíveis do jardim da faculdade de psicologia. Se sentia exausta e arrependida de ter marcado um horário: tanta gente com tanta coisa mais urgente e ela ali, com todo o privilégio, usando um tempo precioso do sistema público. Ontem mesmo estava indecisa se ia ou não e pediu alguns conselhos, as respostas ainda latejavam em sua mente: ai quanto drama! você sempre dá dessas! é só esquecer! marcar horário por uma bobeira assim! Encolhida em si, cavoucava com o pé o canteiro ao lado, talvez conseguisse cavar um buraco suficientemente grande para se esconder. Olhou agoniada o relógio, faltavam dois minutos. O pânico rapidamente percorreu seu corpo, levantou e saiu apressada para o estacionamento. Mal deu cinco passos quando ouviu seu nome ser pronunciado: a porta agora estava aberta e um rapaz se escorava nela; vestia um avental branco e segurava uma prancheta perto do peito. Deveria ter a sua idade, um dos graduando do instituto talvez? Ela queria lhe falar que tinha desistido, que era só bobeira, o mal-estar já já passaria, mas assim que abriu a boca, ele fez um sinal gentil para que entrasse. Demorou o que lhe pareceu horas para tomar uma decisão, entrou arrastando na sala fresca.
Se dirigiu para uma das muitas cadeiras de colegial disponíveis, viu de soslaio que ele se acomodava detrás da mesa branca. Sentou encolhida e, após um minutinho de silêncio, ouviu-o dizer: então, com o quê posso te ajudar?
Não é precisa a imagem desse rapaz. Não conseguiria distinguir seus traços, nem a sua voz ou o seu tom. Sabe que é rapaz porque tinha barba. E sabe que era alto porque sua presença lhe parecia imensa no cruze da porta. E ela estava tão devastada, derrotada em seus crimes de existência, em suas bobeiras, que não queria encarrar novos olhos de julgamento. Se forçou a focar o chão e os seus pés inquietos. Se sentia ali crua, nua, pronta pro abate. O que falou naquela hora? Não se lembra tampouco. E importaria? Saiu de lá se sentindo pior do que quando entrou, como se suas vísceras tivessem sido abertas para um completo desconhecido. Toda a sua mesmice, a sua caretice, ignorância, egoísmo, pequenez. Tantas bobagens que ainda latejavam.